ORTÓPTEROS ONÍVOROS
Odeio baratas, eu confesso, sob juízo, ou tortura. Nada é mais torturante que vê-las se arriscando até mim, seus vôos de traças - traça não voa - mas é um voo de traça, sim. Definitivamente.
Outra característica infame que elas têm: a divindade. São os seres mais fiéis da criação; seguem, com a maior das fidelidades, os preceitos divinos do "crescei-vos e multiplicai-vos".
E as danadas são resistentes, uns bichos resistentes que elas são! Tão resistentes que, com elas, não têm tempo ruim. Se acena o sol, com um lindo e ofuscante dia; ou se algum líder extremista-doido solta uma bomba nuclear que dizime a vida no planeta, quem sobreviverá? Acertou quem respondeu: barata.
Odeio a fidelidade delas, a probidade com que se apegam à vida. Mas, no fundo, são como eu: torturantemente vivas presas por entre as veias do destino.
Odeio ter de botar veneno nelas, dedetizá-las. Aniquilá-las por algum tempo para, daí a pouco, retornarem ainda mais soberanas, vivas, mais nojentamente cascudas. É frustrante vê-las voltar à vida, embora compensador, saber-se livre do assassínio que sobre meus ombros pairava.
Dona Barata, eu vos afirmo: não há, sob hipótese alguma, tratado de paz entre nós. Seremos sempre, inimigas, sempre! Lamento dizer isso, mas é melhor mesmo que fiquemos cada qual no seu canto, defendendo a parte que nos cabe nesse latifúndio - toda a vida. Assim é melhor.
Ou sou eu quem me protejo da vida, evitando-as? Afinal, são uns bichos de Deus, do meu Deus Cristão. Francisco de Assis certamente não as repudiaria, e eu o amo tanto! Mas nem a minha paixão por Assis retrai meu ódio.
Resguardo-me de uma paixão/compulsão incontrolável de devorá-las, como fez G.H., para saber-me, no imo do nojo, a ancestralidade que povoa toda entidade viva desse planeta, na raiz da vida, aonde bicho se faz bicho, e gente, gente.
Será preciso comer a barata para que eu confirme a tese de que sou inferior a elas, nos quesitos fundamentais da vida: crescer, multiplicar, RESISTIR?
Não resisto à vida sem que ela não resista a mim: somos medrosos; amantes, porém.
Certos códigos fundamentais se cumprem, sou bicho humano, civilizado demais e é natural que eu me enoje com a barata. Mas meu instinto mais primitivo, na ira do seu repúdio, sente-se infinitamente atraído pela vida que pulsa nelas - nas baratas. Acredito que, no fundo, meu nojo, imiscui-se ao nojo delas.
Nós, humanos (???), construímos castelos, erguemos impérios, civilizações, deflagramos ódio uns contra os outros em nome da religião, da ciência, do dinheiro e do amor. Nossos defeitos mais repugnantes nos destroçam, dia após dia, aparta esse amor raro e divino com que Deus nos maculou. Contudo, eu garanto aos céticos de plantão: não é só isso, o amor é muito mais do que eu possa narrar, vislumbrar ou sentir.
Baratas não amam. Se amam, amam-se num amor de barata, que não é o nosso amor. Amam um amor que a pretensão e/ou a curiosidade humanas jamais conseguirão entender.
Somos amantes de um mesmo homem, eu e a barata. Barata é feminina, mesmo no masculino, está, portanto no páreo. Somos amantes desse Deus de calças e de saias. Tão fantástico esse Deus!
Deus, gênese, criação. Entidade cósmica que pariu a todos nós: eu, a barata, o mendigo. Pariu-nos como se fôssemos garças, ou peixes, não sei. Mas nos pariu em alto mar, ainda me lembro vagamente a rota do voo da garça que eu era tão livre!
Como um navio sem almirante, como renascentistas obcecados com a perfeição das formas, como um... filhote de barata. Eu nunca vi, confesso. Mas somos todos convidados de um mesmo banquete divino - que eu preferia barroco, ah! as orgias.... É preciso me controlar.
Como dizia, somos convidados de honra de um mesmo banquete, de uma forma ou de outra unimo-nos em nossas semelhanças e dessemelhanças. Somos fios da mesma teia, fêmeas de um mesmo Homem - até os homens.
Por mais que esse Deus bígamo, trígamos; mais, muito mais... a natureza inteira, cada joaninha, cada bicho de pé é sua amante! Por mais que esse bondoso Ser nos proveja em seu amor universal e teoricamente não tenhamos do que reclamar, seremos sempre rivais. Não há como escapar: todo amor pede exclusividade a si. E não me venham falar de amor livre não!
A existência está aí, toda incontrolada, reproduzindo-se mais que barata ou coelho.
Eu jamais serei tua amiga, Dona Barata, por mais que eu te ame, porque te odeio também. Nem sob caridade, porque amamos o mesmo Homem e entre nós cairá sempre o jugo de Deus.
Barata humana que sou, resistindo, toda retorcida em meu ódio-amor, corpo nojento d'onde pairam aflições sagradas.
Limpe minhas chagas, Dona barata! E vós captareis de mim o mesmo nojo que vos nutro com vossas sensíveis antenas.
Elas - as baratas, que não têm sua parcela de humanidade - e sim de barata, convivem há tanto tempo conosco, embora sejam habitantes bem mais antigas que nós, que talvez tenham nos decifrado os hábitos e as vergonhas. Não concebo que, com tamanho tempo de convivência não temos, umas com as outras, aprendido uma única lição. Talvez um dia, uma tribo primitiva qualquer, que com elas convivam em paz, possa ensinar-me o ritual dessa convivência.
Mas por enquanto, não! Se ao menos pudéssemos viver em harmonia, cada qual em seu canto! As teimosas, porém, ainda dão sinal de si, enquanto deviam se alojar em seus pardieiros de baratas, e nós, em nossos pardieiros humanos. Seria tão mais simples. (?)
Desconfio, porém, que essa relação de ódio jamais se encerrará. Enquanto viverem suas vidas de baratas, e nós, vidas baratas de humanos, um ou outro ortóptero onívoro (leia-se: barata), muito curioso, tanto ou mais que nós, invadirão nossas cozinhas, rastejarão em nossos banheiros, mesmo sob a ameaça da morte, tão iminente, apenas para exigir o quinhão da humanidade amistosa que lhe sempre negamos.
Fonte:
http://www.beta-mania.blogger.com.br/,
acesso em 16/04/2013.
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