BUROCRACIA
TRAVA AVANÇO CIENTÍFICO
Estudos são adaptados e chegam a ser
abandonados devido ao tempo de espera e à longa lista de procedimentos exigidos
na importação de materiais de pesquisa.
Mesmo diante de tecnologias e processos
logísticos que permitem que encomendas sejam feitas em poucos minutos e
entregas cheguem em alguns dias, a demora imposta pela burocracia existente em
várias esferas faz com que pesquisas universitárias sejam adiadas e até
canceladas. Materiais importados, essenciais a parte dos estudos, levam pelo
menos seis meses para chegar aos pesquisadores brasileiros.
Os longos prazos e o excesso de procedimentos
para avançar estudos são entraves a serem contornados pelos pesquisadores,
impedem o Brasil de ser cientificamente competitivo e comprometem avanços que
trariam impacto na vida de toda a população, como o desenvolvimento de
medicamentos mais acessíveis e eficazes. Embora instituições públicas sejam as
mais prejudicadas, devido à obrigatoriedade de fazer licitações, até entidades
privadas tornam-se reféns do emaranhado de entraves que esgotam recursos, tempo
e a paciência dos pesquisadores.
Solução passa por
ajustes na legislação
Uma solução definitiva para os entraves
provocados pela burocracia é discutida há anos por pesquisadores, universidades
e entidades ligadas à pesquisa científica, mas o problema está tão difuso em
diferentes esferas e instituições que a categoria parece convencida de que
aperfeiçoamentos em legislações específicas são o caminho mais viável.
Desde 2011 tramita no Congresso Nacional um
projeto de lei que daria origem ao Código Nacional de Ciência e Tecnologia, que
resolveria grande parte dos problemas dos pesquisadores. Contudo, a abrangência
do documento faz com que o projeto seja visto como politicamente inviável pelos
parlamentares, diz o pró-reitor da UFPR Edilson Silveira, envolvido na
discussão da proposta.
Com isso, várias entidades, como a Sociedade
Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) e o Conselho Nacional das Fundações
de Amparo à Pesquisa (Confap), estão empenhadas na aprovação da proposta de
emenda constitucional (PEC) 290/2013, que cria o Sistema Nacional de Ciência,
Tecnologia e Inovação, que pode encurtar o caminho para a compra e a importação
de materiais de pesquisa.
A proposta estava programada
para ser votada no plenário da Câmara dos Deputados em 25 de fevereiro, mas a
votação foi adiada por falta de quórum. Ainda não há uma nova data para que a
proposta seja votada.
Poucas queixas
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) alega, por nota, que tem cumprido os prazos legais para a liberação de
material de pesquisa, que seriam de 24 horas. No entanto, diz a agência, não é
possível manter o mesmo prazo quando a encomenda não está corretamente
identificada como material de pesquisa. A nota da agência também diz que os
cientistas não costumam reclamar diretamente ao órgão quando ocorrem problemas.
“A Anvisa tem pouquíssimos questionamentos de pesquisadores sobre este assunto,
normalmente são demandas que chegam pela imprensa”, informa. A reportagem pediu
um posicionamento da Receita Federal, mas não obteve retorno até o fechamento
desta edição.
"Toda a comunidade
científica espera por mudanças na lei. Da maneira como está, o sistema de
importação para ciência e tecnologia inviabiliza ou retarda as pesquisas, mesmo
que tudo seja legalmente aprovado."
Paulo Broffman, cardiologista e
presidente da Fundação Araucária.
Ninguém escapa
A burocracia em processos
científicos é tão abrangente que mesmo pesquisadores que contribuem diretamente
com órgãos de fiscalização se tornam vítimas. O presidente da Fundação
Araucária, o cardiologista Paulo Broffman (foto),
é integrante da câmara técnica da Anvisa e trabalha em um projeto encomendado
pela agência. Para o desenvolvimento do projeto, foi preciso importar um tipo
de soro animal usado no isolamento de células. O produto chegou a Curitiba em 2
de fevereiro, mas, pelo menos até o dia 25, ainda não havia chegado às mãos de
Broffman. “O material está preso na Anvisa e eu não sei se ainda estará bom quando
for liberado”, reclama. Segundo ele, o material foi importado e autorizado
outras vezes e, embora desta vez o atraso pareça maior, a espera é sempre
longa.
O estudo sobre colesterol conduzido pelo professor Dalton Precoma,
na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), por exemplo, teve de ser
adaptado a um plano B. A pesquisa dependia de um produto alemão que permite
controlar o nível de colesterol em cobaias, mas, mesmo com recurso disponível,
os prazos aduaneiros inviabilizaram a execução da pesquisa. “Aquele era o
material ideal, mas a burocracia é tão grande na Receita Federal e na Anvisa
que nós mudamos nossa linha de pesquisa para uma alternativa local”, afirma.
Precoma destaca que esse contexto deixa pesquisadores nacionais
como meros coadjuvantes no cenário internacional, já que estudos publicados e
testados em vários países só se tornam viáveis no Brasil meses ou anos depois.
A queixa se estende à falta de coerência entro os prazos exigidos pelas
entidades financiadoras e o tempo de liberação das importações. “Enquanto
alguns órgãos públicos emperram a vinda dos materiais, outras entidades, também
públicas, como o CNPq e a Capes, não querem nem saber se a demora ocorre por
culpa do próprio governo e são rigorosas no cumprimento de prazos.”
Públicas
Pesquisas de universidades públicas têm obstáculos extras. A atual
legislação não concede dispensa de licitação para pesquisas científicas quando
o pedido parte de universidades. “Um processo licitatório normal leva de três
meses a um ano para passar pelas etapas necessárias. Isso não é condizente com
o tempo que nós, pesquisadores, temos para sermos competitivos em pesquisa”,
diz o pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná
(UFPR), Edilson Silveira.
Na prática, o pedido de um produto usado no desenvolvimento de
vacinas, por exemplo, percorre o mesmo caminho e enfrenta os mesmos prazos que
uma solicitação de compra de tijolos.
Leis divergentes geram conflito de
interpretação
Legislações conflitantes e interpretações diversas são os
principais causadores da burocracia que trava pesquisas no Brasil, diz a
diretora da Divisão de Importação da UFPR, Alba de Araújo. O departamento
trabalha com cerca de 200 processos de importação por ano, dos quais 99% são
dedicados à pesquisa. Alba reconhece que acelerar os processos é um desafio
árduo, mesmo assim, na maioria das vezes, as entidades responsáveis pela
morosidade estariam apenas cumprindo exigências legais.
Ela aponta a contradição entre duas legislações usadas em
importações como grande complicadora dos processos. Enquanto a Lei 8.010/90,
que trata da importação de bens destinados à pesquisa científica, autoriza a
importação direta por instituições devidamente credenciadas pelo CNPq
(categoria na qual estão as universidades públicas), a Lei de Licitações –
8.666/93 – não dispensa as universidades públicas de processos licitatórios
quando recursos próprios são usados.
“A burocracia começa dentro da própria instituição porque os
responsáveis por aprovações ficam reféns da uma legislação conflitante”, diz
Alba. É comum, por exemplo, que os departamentos responsáveis pela apreciação
jurídica de um pedido de compra de material peçam três orçamentos ao
pesquisador, como ocorre com qualquer outra compra da universidade.
No entanto, quando se trata de ciência, muitas vezes essa regra
nem sempre é aplicável, sob o risco de comprometer resultados, lembra o
professor Edilson Silveira. “Usando esse procedimento, eu não posso garantir a
qualidade [da pesquisa] com um material mais barato e acessível, comparado
àquele que realmente atende à necessidade da pesquisa”, destaca.
Alfândega
A subjetividade das interpretações também emperra a liberação de
encomendas pela Receita Federal. Embora a Constituição proíba a cobrança de
imposto sobre imposto por parte da União, estados e municípios, na
interpretação de alguns fiscais, material importado de pesquisa científica não
estaria enquadrado como renda, patrimônio ou serviço, portanto, deveria ser
tarifado.
A classificação tarifária é outra fonte de impasses, diz Alba,
pois, quando há divergência de interpretação entre Receita Federal e
universidade quanto ao tipo de uma mercadoria, muitas vezes, por minúcias
técnicas, a universidade é multada.
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