NÃO SOMOS BÍPEDES À TOA
Novos estudos revelam que o hábito de ficar em pé traz inúmeros
benefícios ao organismo — muitas vezes, até maiores do que uma caminhada.
Quantas
horas por dia você passa em pé? Prepare-se para ouvir a pergunta de seu médico,
se é que ela já não foi feita. Cada vez mais comum nos consultórios, das mais
variadas especialidades, a singela indagação tem sido utilizada pelos
profissionais como uma nova e promissora ferramenta de diagnóstico e
tratamento. As modernas linhas de pesquisa na área da fisiologia têm revelado
que o esforço natural do corpo para manter-se ereto faz bem à silhueta, previne
doenças, melhora o desempenho intelectual e a memória. O mais recente estudo
sobre o assunto, publicado na revista científica American
Journal of Preventive Medicine, revelou ainda o impacto de pequenos
movimentos feitos em pé na diminuição do risco de mortalidade.
Os
pesquisadores compararam os hábitos de 12 000 pessoas com idade entre 37 e 78 anos,
ao longo de doze anos. Elas ficavam sentadas por cerca de sete horas. Muitas só
deixavam a cadeira para realizar atividades essenciais, como ir ao banheiro e
fazer as refeições. Outras tinham o hábito de se levantar para executar
pequenas tarefas no próprio escritório. A conclusão: as pessoas que se mexiam
menos correram um risco 30% maior de morrer em decorrência de doenças
associadas ao sedentarismo, como as afecções cardiovasculares, em relação aos
outros voluntários do estudo. Fala-se aqui de benefícios associados a
movimentos extremamente rotineiros e comedidos, banais. É levantar-se para
atender o celular. É dar alguns passos até a mesa do colega ao lado em vez de
mandar uma mensagem pelo celular ou e-mail. É sair da mesa para tomar um café
na máquina ali pertinho. Os conhecimentos sobre os proveitos de gestos tão
discretos têm se aprofundado a passos largos.
Em junho,
a revista científica British Journal of Sports Medicine publicou um estudo que ditava o tempo
ideal para manter-se em pé em prol da saúde: duas horas por dia. Isso
representa, ao longo de nove horas de trabalho, apenas treze minutos por hora.
O ato de ficar em pé, e por tão pouco tempo, é suficiente para beneficiar
várias estruturas do corpo. A tensão muscular necessária para manter o corpo
ereto, em equilíbrio, facilita a absorção da glicose pelas células dos músculos
com menor mediação de insulina, poupando o trabalho do pâncreas. Aumenta o
consumo de oxigênio celular, melhorando o desempenho cardiovascular, por
exemplo. Depois de duas horas, o corpo ereto queima 20% mais calorias em
comparação ao sentado, independentemente de o tempo ser corrido ou fracionado
(veja o quadro ao lado). Diz o fisiologista Paulo Zogaib, da Universidade
Federal de São Paulo: "Pequenos gestos feitos em pé podem ter mais efeito
no gasto calórico do que uma caminhada".
Na cola das descobertas médicas, surgem os primeiros
recursos para estimular a postura ereta na rotina diária. O Apple Watch, o
relógio da Apple, lançado em abril deste ano, tem um sistema para contabilizar
o tempo que o usuário permanece em
pé. Sim , apenas em
pé. A ferramenta emite um alarme que avisa quando se está
prestes a permanecer sentado por uma hora. Há sinais de mudança também no mundo
corporativo. Empresas de tecnologia, como o Facebook e o Google, começam a
adotar mesas adaptadas para estimular a posição ereta entre seus funcionários.
Batizadas destanding desks (mesas
para ficar em pé, em tradução livre), elas podem ter a altura regulada de modo
a ser possível trabalhar em pé. Na Escandinávia , cerca de 90% dos escritórios
já oferecem essa opção.
Intuitivamente,
o escritor americano Ernest Hemingway (1899-1961) dizia sentir-se mais disposto
e concentrado escrevendo em pé.
Em uma célebre entrevista com o escritor para a revista
literária americana The Paris Review, em 1958, o jornalista
George Plimpton descreveu o ambiente de trabalho de Hemingway durante o período
em que este morou em Cuba: "Seguindo um hábito que adquiriu desde o
começo, Hemingway escreve de pé. Calçando um par de enormes mocassins, pisando
sobre uma pele já gasta de antílope, a máquina de escrever e a lousa se
encontram à sua frente, na altura do tórax". Leonardo da Vinci e Winston
Churchill também mantinham o hábito.
Sob o ponto
de vista evolutivo, ficar em pé foi fundamental para a sobrevivência de
espécies. Os primeiros bípedes surgiram há cerca de 6 milhões de anos, mas não
conseguiam manter a postura ereta por muito tempo. Dois milhões de anos depois,
porém, um acidente natural ocorrido na África, que modificou drasticamente a
vegetação local, pode ter sido a causa do aparecimento dos bípedes mais
resistentes. Uma seca transformou a floresta em savana. Sobreviveram
os que se adaptaram ao terreno plano, com poucas árvores.
Entre
eles, o Australopithecus anamensis. Diz o
neurocientista Renato Sabbatini, da Universidade Estadual de Campinas,
estudioso do assunto: "Com o formato dos ossos das pernas e da pélvis mais
adaptado, eles conseguiam manter a postura ereta, embora seu crânio, mandíbulas
e dentes ainda fossem semelhantes aos de chimpanzés". A cabeça erguida
facilitou uma visão aprimorada dos inimigos. Com o tempo, deflagrou-se a
necessidade de utilizar as mãos para desenvolver ferramentas e carregar
alimentos, o que serviu de estímulo aos neurônios. Foi assim que surgiu o Homo
erectus, uma espécie já com o cérebro mais desenvolvido e maior
capacidade de raciocínio e de locomoção por longas distâncias. A evolução é a
prova irrefutável de que, embora o ser humano moderno queira - e goste de -
conforto, ficar de pé por alguns minutos tem um impacto extraordinário na sua
sobrevivência.
Fonte:
http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/nao-somos-bipedes-a-toa,
acesso em 03/11/2015.
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