AS ESCOLAS NÃO SÃO PÚBLICAS. E PRIVATIZAR NÃO RESOLVE
Em VEJA desta semana, o colunista Gustavo Ioschpe escreve: 'Os melhores sistemas educacionais do mundo gastam basicamente o mesmo que nós e também têm a maioria de suas matrículas em escolas públicas, como nós. O que falta para iniciarmos a melhoria é demanda popular por uma educação de qualidade'
Quando escrevi sobre a inércia do sistema de educação pública brasileira, no mês passado, a turma da direita comentou que o problema não é simplesmente da área educacional, e sim do setor público como um todo. A única maneira de solucioná-lo seria deixar o problema nas mãos da iniciativa privada, que é mais competente, para que assim pudéssemos dar o salto educacional de que o país precisa. Já os esquerdistas viram no artigo mais uma confirmação de que eu, como peão subordinado aos interesses do capitalismo, estou armando o terreno para a defesa da privatização de todo o sistema de educação pública brasileira, como parte do malévolo plano de manter as classes baixas em sua secular ignorância e opressão.
Continuando na minha senda de alienar todos os interesses e grupos organizados, lamento informar que discordo de ambos. Deixo de lado os argumentos políticos, sobre a possibilidade de uma privatização em larga escala, e também os ideológico-patrióticos, sobre a desejabilidade dessa iniciativa, para falar apenas das questões técnicas: não acredito que a privatização do sistema educacional teria impactos significativos sobre a qualidade do ensino.
Porque a minha análise do problema educacional brasileiro é que já temos, em linhas gerais (sempre há sobras e excessos em um país enorme e descentralizado como o nosso), tanto o financiamento quanto o arcabouço institucional para dispormos de uma educação de qualidade. Os melhores sistemas educacionais do mundo gastam basicamente o mesmo que nós e também têm a maioria de suas matrículas em escolas públicas, como nós. O que falta para iniciarmos a melhoria é demanda popular por uma educação de qualidade. Sua ausência gera falta de ação da classe política, dos gestores de escolas e dos professores.
Ter uma boa rede de escolas dá trabalho. Muito trabalho. Constante e ao longo de muitos anos. Os professores vão precisar trabalhar mais, as universidades vão precisar reformular seus cursos e cobrar resultados dos alunos de pedagogia e licenciaturas, os diretores terão de liderar, monitorar e prestar contas, as secretarias de educação precisarão estar em cima de suas redes, os alunos terão de estudar e ler mais e os pais precisarão se engajar mais com as escolas de seus filhos e com seu estudo em casa. E isso só acontece quando há vontade de todos. Muita vontade, muita cobrança. E, ainda que eu defenda intransigentemente o direito do pai com recursos de matricular seu filho onde bem entenda, é preciso reconhecer que privatizar o sistema não vai gerar essa cobrança de que precisamos.
Uma escola privada de massas precisaria ser financiada pelo governo, já que a maioria dos pais não teria recursos para custear a escola e o sistema bancário é ineficiente na concessão de créditos a alunos de educação básica. O governo pode transferir o dinheiro diretamente aos donos das escolas, como se faz em muitos países europeus e nas escolas charter americanas, ou aos pais dos alunos, através de vouchers, como é ou foi feito no Chile, em alguns estados americanos, na Nova Zelândia e na Colômbia.
Ora, se o dinheiro não vem do bolso do pai, e se esse pai vai continuar tão ignorante sobre como avaliar uma educação de qualidade quanto antes, por que imaginar que ele vai se engajar pela educação do filho de maneira diferente daquela que faz hoje? E, se o dono da escola sabe que poderá continuar engabelando sua clientela da mesma maneira que políticos, diretores e professores o fazem hoje, por que haveria de se esforçar para dar uma educação de ponta? Não faria muito sentido.
A experiência confirma a lógica. O resumo das pesquisas é que o aprendizado dos alunos das escolas charter não difere do daqueles matriculados em escolas públicas tradicionais. Os pais de alunos que estudam nessas escolas, onde há uma loteria para sortear vagas, estão mais satisfeitos com a educação dos filhos do que os pais dos alunos que tiveram de colocar seus filhos nas escolas públicas, mesmo quando o aprendizado das crianças nos dois tipos de escola é indistinguível. Parece, portanto, que o simples fato de ganhar na loteria e conseguir colocar o filho em uma escola privada já gera contentamento. Não apenas não há diferença de qualidade, como a escola charter deixa o pai ainda mais acomodado do que antes, na ilusão de que seus problemas acabaram por ter colocado seu filho em escola privada. Um sistema semelhante no Brasil seria ainda mais desastroso. Outro estudo mostra que não há ganhos permanentes de disciplina ou motivação do aluno que passa por uma escola charter: se ele retorna para uma escola pública, passa a ter os mesmos problemas de comportamento e absenteísmo.
O sistema de vouchers foi mais estudado no Chile. O regime de Pinochet manteve as escolas públicas e privadas, e adicionou a elas um híbrido, a chamada escuela subvencionada, uma escola privada financiada através de vouchers do poder público. Estudos que levaram em conta o nível socioeconômico dos alunos mostraram que a diferença entre as escolas era explicável pelo status dos pais, não pelo fato de ser pública ou privada. Outro estudo mostrou que os vouchers haviam simplesmente mudado a distribuição dos alunos nas escolas: como as escuelas subvencionadas podiam aplicar testes de seleção e, a partir da década de 90, cobrar uma "ajuda de custo" dos pais, o que elas fizeram foi retirar das escolas públicas os alunos mais capacitados e mais ambiciosos. Para o país como um todo, o efeito foi nulo. Quanto aos pais, viu-se que o mais importante na escolha da escola do filho era a distância de casa, não a qualidade ou a proposta pedagógica. (A íntegra dos estudos está em twitter.com/gioschpe.)
Toda essa discussão, no fundo, é irrelevante, porque as escolas brasileiras não são privatizáveis. Por uma questão conceitual. Porque só pode ser privatizado algo que é público, e as escolas brasileiras não são públicas, se por público entendemos "relativo ou pertencente a um povo, a uma coletividade" (Houaiss). As escolas ditas públicas no Brasil são, em alguns casos, escolas estatais, que estão lá para servir os desígnios dos ocupantes do poder político. Na maioria dos casos, são escolas corporativas, cuja função principal é defender os interesses de seus professores e funcionários. Apenas em raros casos é que elas estão focadas nos interesses de seu alunado, seu público.
Privatizar a escola brasileira não resolve. O que precisamos fazer é torná-la efetivamente pública, de modo que ela passe a atender às necessidades do país e dos alunos que a frequentam. Precisamos parar de pensar nossa educação em termos ideológicos ou mágicos, acreditando em balas de prata, planos nacionais, cláusulas de financiamento ou outras soluções mirabolantes. Não há decreto que resolva. A máquina é complexa e cheia de enguiços. Ou arregaçamos as mangas e mexemos nas engrenagens defeituosas, ou continuaremos nos lamentando.
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