ENXURRADA DE LAMA TIRA
VIDA DOS ECOSSISTEMAS
Rejeitos avançam
pelo Rio Doce; inventário de prejuízo ambiental deve levar anos.
Dez dias depois do rompimento das barragens de rejeitos da
mineradora Samarco - de propriedade da Vale e da australiana BHP Billiton -, na
região de Mariana (MG) o cenário é de devastação e desesperança em toda a área
atingida, que se estende por centenas de quilômetros. O impacto da enxurrada de
62 milhões de m³ de lama avança rumo ao oceano e deixa um rastro de destruição.
O inventário dos prejuízos sociais e ambientais ainda está apenas começando,
mas, de acordo com especialistas, os ecossistemas atingidos estão
irreversivelmente comprometidos.
Embora
as empresas responsáveis sejam obrigadas pela Constituição Federal a pagar a
recuperação total dos estragos ambientais, neste momento, nem elas nem o
governo ou cientistas sabem como será possível fazê-lo.
Se o impacto ambiental é ainda desconhecido e a recuperação
inimaginável, suas consequências são bem concretas para quem as sente na pele.
Em um pequeno pasto na margem do Rio do Carmo em Barra Longa (MG),
Gilson Felipe de Rezende, de 42 anos, cuida de cerca de 15 cabeças de gado. É
uma área de menos de um hectare, que até então tinha como vantagem justamente o
rio, fonte farta de água para o gado. Fica a exatos 71 quilômetros de distância
do ponto em que as barragens da mineradora Samarco romperam. E está coberto de
barro.
Mesmo a essa distância, a lama foi capaz de formar ali uma
"casca" nas margens e no fundo do rio, que chega a um metro de
espessura - tanto do lado do pasto de Rezende como na margem oposta. O curso
d’água em que, antes, era possível navegar de canoa, virou um rio raso. Nessa
crosta de lama, os peixes aparecem aos montes, grudados no chão, como se fossem
fósseis. Toda a região tem um forte cheiro de carniça.
"Tinha umas 50 capivaras que ficavam por aqui. Desde que a
barragem rompeu, só vimos uma", conta Rezende, apontando para as pegadas
que o rodeor deixou na lama, já endurecida e esbranquiçada por causa do sol
forte e do calor da região.
A cena impressiona mais quando ele conta como a lama chegou:
quando a enxurrada, que vinha do Rio Gualaxo do Norte, desaguou no Rio do
Carmo, seguiu tanto pelo fluxo normal da água quanto no sentido oposto.
“A lama avançou contra a correnteza”, explica. E avançou quase um
quilômetro contra a água, até formar uma espécie de represa. Agora, ao chegar
perto de Barra Longa, o Rio do Carmo tem parte de seu curso desviado para o
mato. O que segue é um fio de água ao redor das margens de lama grossa.
“Perdi uma vaca naquela noite, quando a lama chegou. Quase
perdemos outra no dia seguinte, atolada na lama, mas conseguimos salvar”,
contra o serralheiro, enquanto caminha sobre a lama seca, tão alta que
praticamente encobre as cercas que dividiam a propriedade que ele cuida da
terra vizinha. “Era uma vaca que tirava 15 litros de leite por dia”, lamenta,
ao se recordar do bovino perdido.
Todo o rebanho, entretanto, está em risco. A água dos animais
era o próprio rio. "As duas nascentes que têm por aqui secaram. Vai
demorar uns 10 anos para isso voltar a ser como era."
Talvez demore mais. De acordo com Carlos Alfredo Joly, do
Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
dificilmente será possível reverter o impacto da lama na biodiversidade.
“Os rejeitos que se acumulam nas margens dos rios são feitos de um
sedimento fino, que altera a composição original do solo, tornando-o mais
compacto. Com isso, as matas ciliares serão afetadas. A vegetação perto das
margens morrerá e a modificação no solo matará também as árvores que não foram
carregadas pela enxurrada de lama, abrindo grandes clareiras, com impactos em
todo o ecossistema”, disse Joly.
Enquanto isso, segundo o cientista que coordena o Programa Biota,
da Fapesp, a perda de oxigênio da água condenará a fauna dos rios, afugentando
ou dizimando os animais que se alimentavam dela. "Pode ser até que a
floresta se recupere, mas vai demorar mais que o tempo de uma vida. Nenhum de
nós viverá para ver a vegetação voltar a ser como era", afirmou. De acordo
com ele, dificilmente as técnicas conhecidas de reflorestamento funcionarão
para uma área tão vasta e com um impacto tão severo, já que a lama dificilmente
pode ser removida.
Pesca. Para quem vive da pesca no Rio Doce, a
situação é dramática. O pescador Eli da Silva Soares, o Paco, de 38 anos,
percorre de barco parte da região afetada e aponta os peixes que agora flutuam
mortos no rio. "Aquele ali é um tucunaré. Tem peixe aqui aparecendo que a
gente pensou que nem existia mais. Mas como a gente vai fazer agora? Isso aqui
está tudo morto. Vai levar muito tempo para poder pescar de novo",
afirmou.
Vivendo em uma vila a 50 metros do rio, no município de Governador
Valadares (MG), Paco e sua família conseguiam R$ 1 mil mensais com a pesca.
Durante o passeio pelo cenário sem vida, ele e as irmãs Elaine, de 36, e
Eliane, de 39 anos, expressam falta de esperança pela recuperação da área.
"Isso não vai recuperar nem daqui a cinco anos", diz o pescador,
endossado pelas irmãs. "A gente vive disso aqui e agora não tem nem o que
fazer", reforça Elaine.
De cima, a água laranja do Rio Doce parece estática. A lama de
rejeitos se move a cerca de 1,2 quilômetro por hora desde o dia 5, quando
aconteceu a tragédia, e vai percorrer toda a calha de 853 quilômetros entre o
município de Rio Doce, em Minas, até Regência, vila do município de Linhares
(ES), onde encontra o Oceano Atlântico. De perto, é mal cheirosa e, mesmo
distante mais de 230 quilômetros do ponto de rompimento das barragens, carrega
pedaços de árvores e detritos arrancados durante o trajeto. A expectativa é que
a onda atinja o oceano neste fim de semana, levando mais problemas de
abastecimento a cidades capixabas.
Oceano. Segundo Alexander Turra, do Instituto
Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP), quando a água poluída do rio
chegar ao estuário - que normalmente acumula sedimentos finos -, a decantação
de um sedimento diferente do natural terá impacto intenso na fauna marinha.
"Mais turva, a água não deixará passar a luz e impedirá a
fotossíntese das algas no fundo, afetando também o plâncton. Esses organismos
são a base da cadeia alimentar e sua perda terá impacto em todos os organismos
marinhos. Os peixes morrerão ou fugirão para outros lugares, afetando
severamente a pesca local", afirmou.
A areia das praias capixabas terá suas características
modificadas, de acordo com o pesquisador. "A lama
poderá transofrmar a cor e a textura das areias das praias capixabas,
modificando a sensação de anda sobre ela. Além do impacto na biodiversidade,
teremos consequências graves para o turismo", disse Turra.
Efeito crônico. Segundo ele, cada vez que uma chuva forte
atingir o vale do Rio Doce, mais lama endurecida se dissolverá e escorrerá
novamente para o mar. Isso deverá gerar problemas de abastecimento para as
cidades mineiras e capixabas ao longo de anos. "Haverá um efeito crônico,
persistente", disse.
"Além desses prejuízos, essa região é uma das mais
biodiversas na costa brasileira - e é uma importante área de reprodução de tartarugas
marinhas. Os ecossistemas formados pelos corais, muito sensíveis, poderão ser
afetados.
Não sabemos ainda se a mancha de lama poderá chegar até
Abrolhos", declarou Turra.
Ninguém sabe ainda exatamente como recuperar o assoreamento dos
rios da região. "Talvez um caminho seja aprofundar o canal dos rios com
dragagem, mas será um trabalho hercúleo. Se uma caçamba tirar meio metro cúbico
por vez, precisaremos de 130 milhões de caçambadas. Algo inimaginável",
afirmou Turra.
Impacto cumulativo. De acordo com José Galizia Tundisi,
do Instituto Internacional de Ecologia (IIE), os impactos ainda estão
longe de ser avaliados em sua totalidade. "Há um impacto visual evidente.
Mas há também toda uma série de alterações que só será mensurável a partir de
análises da qualidade da água nos ecossistemas atindidos. Também não sabemos a
magnitude do impacto cumulativo. Por isso não sabemos quanto tempo ele vai
durar. Poderá haver alterações importantes em aspectos da bacia hidrográfica
que ainda não foram identificados", disse Tundisi.
Segundo Tundisi, ainda não é possível saber como recuperar os
rios. O que se sabe com certeza é que eles sofrerão muitas mudanças físicas,
químicas e biológicas. "Isso já ocorreu. Para recuperar vai ser muito
difícil. Talvez até seja possível restaurar a parte morfológica, removendo os
sedimentos em uma megaoperação. Mas a provável contaminação da lama por metais
terá consequências em cascata, porque vários animais se alimentam de outros que
foram contaminados. Esse ciclo alimentar chega até o ser humano, com efeitos
cumulativos. Ignoramos também se essa contaminação química atingiu os lençóis
freáticos", disse.
"Não sabemos como isso vai ser recuperado. Não temos
tecnologia disponível para enfrentar um impacto dessa magnitude. Certamente
levará muito tempo e custará muito caro resgatar as características funcionais
desses rios", declarou Tundisi.
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