ELES ABANDONARAM O
PARAÍSO
O lugar é lindo, a comida, abundante, o ambiente cultural
efervescente. Um verdadeiro paraíso. Mas um belo dia, como se decidissem que
não valia mais a pena viver ali, os habitantes resolvem partir. O ano, 1285, o
local, Mesa Verde.
Quem visita Mesa Verde fica boquiaberto. Vilas inteiras
encravadas nas encostas verticais de imensas montanhas. No platô acima e no
vale logo abaixo, a vegetação é abundante. A vista das casas é maravilhosa. O
local é seguro. Acesso, só com escadas de madeira. Este local, que fica onde
hoje os Estados de Utah, Colorado, Arizona e Novo México se juntam, foi ocupado
por uma população de agricultores por volta dos anos 600.
Esse paraíso foi abandonado abruptamente 700 anos depois, por
volta de 1285. E nunca mais foi habitado. Os descendentes dessa população vivem
até hoje no sul do Novo México, não estão extintos, somente se mudaram. Em
1996, quando visitei o parque nacional de Mesa Verde, ninguém sabia o que tinha
acontecido. Agora esse enigma foi parcialmente esclarecido.
Três linhas de investigação contribuíram para desvendar o
mistério. A primeira foi um mapeamento das datas em que as construções foram
erguidas. Isso foi possível analisando os anéis de crescimento nos troncos
usados nas construções. Essa sequência temporal permitiu mapear cada casa e
cada reforma com precisão de alguns anos. A segunda linha de investigação foi a
identificação de todas as 18 mil ruínas espalhadas pela região. A data de
construção de cada sítio arqueológico e sua posição foi relacionada ao padrão
climático. A partir desses dados, foi possível calcular não só a população a
cada ano, mas a quantidade de comida produzida. A terceira linha de
investigação foi a análise dos esqueletos enterrados em cada década.
Analisando os esqueletos é possível estimar o nível de
violência. Juntando todos esses dados, os cientistas tentaram reconstruir o que
aconteceu durante os 700 anos em que seres humanos habitaram Mesa Verde.
Durante os primeiros 400 anos, até aproximadamente o ano 1000,
os habitantes viviam nos platôs em construções simples, próximas dos campos
cultivados. Nesse período, a população cresceu de 5 mil para 7 mil pessoas e a
violência praticamente não existia. Os esqueletos não mostram sinais de
agressão.
Nos anos seguintes, a população explodiu para 30 mil habitantes
e foi possível detectar grandes flutuações no tamanho da população. Essa
flutuação parece estar correlacionada a períodos de grandes secas e chuvas
abundantes. Foi nessa época que a população deixou as casas simples, próximas
das plantações, e construiu as vilas incrustadas nos penhascos.
Nesse período aumenta o número de esqueletos que sofreram morte
violenta.
A maior cidade de Mesa Verde se localiza em um local mais alto,
onde os estudos climáticos demonstram que as secas periódicas são menos
frequentes, talvez a única região capaz de produzir alimentos nos anos de seca
e provavelmente a mais disputada.
Tudo indica que o meio ambiente local não foi capaz de suportar
a população que aumentava rapidamente. Talvez surtos de fome, provocados pelas
secas, tenham contribuído para o aumento da violência e para a construção de
vilas fortificadas nas laterais das montanhas.
Esse processo atinge um pico em 1270, quando ocorre uma grande
seca. Nos 15 anos seguintes, a população abandona a região.
A conclusão é que o aumento de população, práticas agrícolas não
sustentáveis e flutuações climáticas geraram instabilidade social, violência e
a construção de cidades protegidas. Chegou um momento em que a tensão foi
demais. E a migração em massa começou. O paraíso que era Mesa Verde tinha se
transformado em um inferno.
Esse fenômeno migratório, que aconteceu muito antes da
descoberta da América pelos europeus, não é muito diferente do que estamos
observando na Europa e na África de hoje. Diversos paraísos ao redor do planeta
estão se transformando em
infernos. E por razões não muito diferentes. Mas, se a Terra
toda se transformar em um inferno, não teremos para onde ir.
MAIS
INFORMAÇÕES: AND THEN WERE NONE. NATURE VOL. 527 PAG. 26 2015
Autor: FERNANDO REINACH É BIÓLOGO
Fonte http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,eles-abandonaram-o-paraiso,10000001964,
acesso em 14/11/2015.
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