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O FILHOTE

terça-feira, 24 de novembro de 2015

TRAGÉDIA COM O RIO DOCE


O brasileiro é um serial killer de rios, lagoas e mares.

No sábado (21) passado, ao final da manhã, sobrevoei próximo à foz do rio Doce no momento em que a fatídica lama da represa rompida em  Mariana chegava ao mar. Visto de dez mil metros de altura e registrado nas fotos que tirei, o rio se assemelhava a um filete de sangue escorrendo na superfície do planeta azul.

A fatídica e espetacular viagem da lama ao longo de quase 800 km de Minas ao mar desde o dia 5 passado, foi na verdade o golpe de misericórdia no Doce. A morte do Doce nos comove pela rapidez e forma catastrófica com que se consumou. Explico.

Não tenha ilusões, o rio Doce não era tão idílico quanto parecia ser antes do desastre final. De acordo com o ranking do IBGE de 2012, o Doce era o décimo mais poluído rio em nosso país apresentando um alto nível de resíduos químicos provenientes de mineradoras e de pesticidas usados nas propriedades rurais.

O Doce já agonizava, como de uma forma ou de outra agonizam os quase 12 mil rios que integram as nossas 196 bacias hidrográficas e que vão de ano a ano se transformando em rios zumbis pela pressão, incúria e predação que nós brasileiros os tratamos.
O laqueamento catastrófico da calha do rio Doce, que equivale ao holocausto do ecossistema da bacia do Vale do Rio Doce, ganhou visibilidade exemplar e em profundidade pelas reportagens e pelas conversas em redes sociais. Foi o primeiro rio no Brasil do qual assistimos a morte como se fosse um reality show. Foram quinze dias de agonia acompanhando o caminho da lama ao mar.

Como sempre em um desastre a causa é uma conjunção de fatores. Com justa razão clamamos por culpados. Certamente a espetacularização da morte do Doce tem na primeira fila dos responsáveis a incompetência das mineradoras e a disfuncionalidade do governo.

A lista de culpados pode ser ampliada às custas de especulações de ordem ideológica. Por exemplo, você pode mandar para o banco de réus desde a “herança maldita do FHC”, o ex-governador Aécio Neves, pode salientar que isto é efeito da “privataria tucana” que entregou às multinacionais nossas riquezas minerais no contexto de uma conspiração internacional, a qual obviamente contou com o concurso da “grande mídia” e especialmente com o apoio do “partido da imprensa golpista”, também conhecido como PIG.

Se você é mais, digamos, à direita, isso é, um neoliberal, você pode culpar a esquerda, o PT, a presidente, o governador de Minas, o aparelhamento e ou sucateamento das agências de regulação e fiscalização das administrações bolivarianas Lula  e Dilma. E, é claro, o Zé Dirceu!
  
Claro, no Brasil, as pessoas inteligentes e esclarecidas não se esquecem nunca de colocar a culpa na ganância das empresas, nas elites e no capitalismo.

Ocorre que exatamente sob o sistema capitalismo vão ocorrendo no exterior avanços consideráveis em termos de despoluição sistemática de grandes rios, lagoas e baías desde os anos 60. Como por exemplo, o Sena em Paris, o Tâmisa em Londres, o Reno na Alemanha, o Han e o Cheonggyecheon na Coréia do Sul, a baía de Estocolmo, etc. etc.

Ocorre que nós, os brasileiros, como um todo, ricos e pobres e de classe média, de esquerda e de direita, empresários e sindicalistas, intelectuais e analfabetos, brancos e pretos, católicos e protestantes, evangélicos e ateus, temos uma vaga ideia do que seja o uso sustentável de rios e mares. Na verdade, pouco ligamos para isso.

Para o brasileiro, rios têm basicamente dois tipos de usos: barragens para gerar energia elétrica e vazadouros que servem para conduzir para mais longe de nós mais variados tipos de rejeitos, sejam orgânicos, tóxicos, lixo, resíduos químicos, pesticidas, colchões, pneus, restos de construção ou merda pura de milhões de seres humanos.

O senso comum do brasileiro não liga muito rios à água potável. Uma das primeiras coisas que o gringo aprende ao desembarcar no Brasil é que nosso “normal” é que a água de torneira não é potável, sendo que nos países verdadeiramente desenvolvidos bebe-se água da torneira, inclusive nos restaurantes.

Mas aqui o absurdo parece não ter limites: um executivo amigo meu e sua família há mais de trinta anos só consomem água mineral engarrafada. Mesmo famílias morando em favelas do Sudeste já se abastecem de água potável comprando garrafão de água mineral. E nem pense em pedir água torneira em restaurante brasileiro. É no mínimo uma gafe.

A maior prova de que o brasileiro se rala para o estado calamitoso das águas no Brasil é a naturalização com que paulistas convivem cotidianamente com a presença conspícua e infame do Tietê, o mais poluído rio do Brasil, e do rio Pinheiros. Isso na região que gera 40% do PIB nacional.

Igualmente os cariocas e fluminenses se acostumaram com o fato de que magnífica baía da Guanabara tornou já há décadas virtualmente uma cloaca, industrial e residencial, a serviço de uma região metropolitana de 12 milhões de habitantes. Mesmo os afluentes moradores de Ipanema, Leblon e do restante da zona sul parecem estar resignados com o fato da Lagoa Rodrigues de Freitas ser apenas um belo cartão postal.

No restante do país essa naturalização do envenenamento e do desprezo pelos rios é exatamente o mesmo. Falemos de meu estado natal, Minas Gerais. Ali a principal atividade econômica sempre emporcalhou sistematicamente seus rios desde o século XVII com os mais variados tipos de mineração e extração de recursos minerais. Afinal o nome do estado é Minas Gerais, uai!

Na região Metropolitana de BH, também chamada de Zona Metalúrgica, os rios estão todos e sem exceção mortos, incluindo o Rio das Velhas, outrora um grande rio. Esse em compensação está na tal lista do IBGE dos dez mais poluídos do Brasil. É o progresso. E o Arrudas? O ribeirão que cortava BH, desde os anos 60 como um fluxo de esgoto imundo e obsceno, sumiu! Foi escondido dos nossos olhos nos anos 80 por grandes lajes que servem também como piso de vias de tráfego congestionadas cronicamente.

Os pernambucanos seguem contando a velha anedota sobre sua aristocrática ascendência sobre o restante do Nordeste dizendo que “ o Atlântico é formado pelo encontro do Capibaribe com o Beberibe”. Dizem ainda que “Recife é a Veneza brasileira”. Entretanto, os pernambucanos sinceros caçoam e admitem que dado o nível de poluição de seus rios Recife é na verdade a “venérea brasileira”.
Nas capitais e cidades igualmente no Norte e Nordeste a urbanização feita ao redor dos rios sistematicamente emulou o modelo de relacionamento pervertido São Paulo-Tietê.

Nem mesmo o próspero e mais educado Sul se livrou da tara brasileira de assassinar sistematicamente os cursos de água e lagoas. Tampouco os gaúchos, com seu superior Índice de Desenvolvimento Humano e pretensões de superioridade cultural sobre o resto do país, podem se gabar. O Porto é Alegre, mas nem pense em nadar no Guaíba, pois o rio segue recebendo toneladas diárias de esgoto in natura. Quem se importa?

Mostre-me que estou errado e exagerando. Basta apontar um único curso de água, seja rio, riacho ou mesmo lagoa em uma de nossas 5.565 cidades que tenha sido despoluído.

Mas não nos basta assassinar os rios. O brasileiro parece ter em seu DNA a repulsa por águas limpas na natureza, sejam doce ou salgada. Do Oiapoque ao Chuí, praias urbanas tem um nível de presença de coliformes fecais muito acima do considerado civilizado dado o estágio em que nos encontramos de tecnologia ambiental e de saneamento. Nas praias urbanas o brasileiro nada ainda em meio ao o lixo sobrenadante, com destaque para as embalagens PET e sacos plásticos.

Não acredito que a comoção frente à trágica morte do rio Doce vá mudar a cultura predatória do brasileiro. Até o final do ano novas tragédias, atentados, crises e fofocas vão deixar no passado remoto a tragédia de Mariana.

Rios limpos não são uma questão de apelo cotidiano para nós brasileiros. Qualquer tentativa de ir na contramão desta psicótica tendência acaba soando quixotesca e fadada ao insucesso, como comprova o fechamento recente e melancólico da ONG  SOS Rios do Brasil.

Para o brasileiro, especialmente do ponto de vista de nossos governantes, sem exceção desde o regime militar, a questão crucial é que os grandes rios, limpos ou mesmo imundos, continuem correndo para megabarragens de forma a garantir geração de energia elétrica.

Mas a natureza está se vingando e vai acelerar o processo de eutanásia dos nossos rios.
O relatório Brasil 2040: Cenários e Alternativas de Adaptação à Mudança do Clima, produzido para a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República por pesquisadores de várias instituições de renome, entre elas o Instituto Nacional de Pesquisas Aeroespaciais (INPE), traz péssimas notícias: a vazão dos rios brasileiros ao longo deste século deverá cair acima de 20% chegando até a 90% de redução em algumas bacias hidrográficas.
                                Descansa em paz, Rio Doce!
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